DA PRESCRIÇÃO VIRTUAL
Segundo Guilherme de Souza Nucci:
Denomina-se prescrição virtual (antecipada, ou em perspectiva) aquela que se baseia na pena provavelmente aplicada ao indiciado, caso haja processo e ocorra condenação. Levando-se em conta os requisitos pessoais do agente e também as circunstâncias componentes da infração penal, tem o juiz, por sua experiência e pelos inúmeros julgados semelhantes, a noção de que será produzida uma instrução inútil, visto que, ainda que seja o acusado condenado, pela pena concretamente fixada, no futuro, terá ocorrido a prescrição retroativa[10].
Diante da definição fornecida por Guilherme de Souza Nucci, verifica-se que é fundamental para a prescrição virtual a prescrição retroativa e a utilidade do processo penal.
É verdade que a Lei Federal nº 12.234/2010, ao afastar a aplicação da prescrição retroativa entre a data do fato e do recebimento da denúncia ou queixa, reduziu substancialmente a utilidade da aplicação do instituto da prescrição virtual.
Inexistindo prescrição retroativa entre a data do fato e o recebimento da denúncia ou queixa, torna-se impossível impedir a instauração de processo criminal, se não houver sido consumada a prescrição em abstrato. Afinal, não se pode, de início, afirmar que a instrução não será cumprida em prazo hábil para evitar a prescrição retroativa.
Apesar da validade dos argumentos acima, o estudo do instituto ainda se mantém relevante. Isso porque, em todos os crimes praticados até o início da vigência da Lei Federal nº 12.234/2010, o indiciado tem o direito ao reconhecimento da prescrição retroativa entre a data do fato e recebimento da denúncia ou queixa.
A Lei Federal nº 12.234/2010, ao reduzir, o âmbito de aplicação da prescrição retroativa, reduziu direito do acusado/indiciado e, dessa forma, não pode ser aplicada para crimes praticados em data anterior ao início da vigência.
Assim, mesmo com a vigência da Lei Federal nº 12.234/2010, o tema em análise demanda estudo mais detalhado.
O Superior Tribunal de Justiça tratou do tema na Súmula 438, ao afirmar: “É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal”.
O Supremo Tribunal Federal também segue a mesma linha:
O Plenário [...], na Repercussão Geral por Questão de Ordem no RE n. 602.527/RS, de Relatoria do Ministro Cezar Peluso (DJe de 18/12/09), reafirmou a jurisprudência no sentido da impossibilidade de aplicação da chamada prescrição antecipada, ou em perspectiva por ausência de previsão legal[11].
AÇÃO PENAL. Extinção da punibilidade. Prescrição da pretensão punitiva ‘em perspectiva, projetada ou antecipada’. Ausência de previsão legal. Inadmissibilidade. Jurisprudência reafirmada. Repercussão geral reconhecida. Recurso extraordinário provido. Aplicação do art. 543-B, § 3º, do CPC. É inadmissível a extinção da punibilidade em virtude de prescrição da pretensão punitiva com base em previsão da pena que hipoteticamente seria aplicada, independentemente da existência ou sorte do processo criminal[12].
O estudo dos precedentes que geraram a Súmula 438 do STJ e dos julgados do STF revela que prevalece a tese no sentido de que a prescrição antecipada é indevida, na medida em que não prevista no Código Penal como causa de exclusão da punibilidade, bem como violaria o princípio da presunção de inocência e da individualização da pena (a análise parte da premissa de que o indiciado seria condenado).
Percebe-se que todos os precedentes não analisam com muita profundidade outro aspecto que seria fundamental para o deslinde da causa. Trata-se do interesse de agir e da economia processual.
Nesse contexto, importante destacar a lição de Fábio Ataíde:
Milhares dos processos criminais demandados no Judiciário até 2005 já estão fadados à prescrição retroativa, a tomar como referência a possível pena a ser aplicada no caso concreto. Por isso, muitos magistrados reconhecem antecipadamente a prescrição retroativa.
[...]
Neste particular, ao contrário da tendência do processo penal moderno, tanto o STF (cf. HC 94.757-3/08), como também o STJ (cf. HC 111.330, DJe 09.02.09), parecem seguir em um campo meramente burocrático, sem identificar as razões práticas que levam os juízes a encontrar na prescrição antecipada uma saída para a retomada da efetividade do sistema punitivo.
[...]
Dessa forma, muitos processos continuam tramitando sem que seja possível tirar deles qualquer efeito na proteção de bens jurídicos. São ações que, quando resultam em condenação, acabam atingidas pela prescrição retroativa, perdendo o Estado o poder de aplicar qualquer sanção. Reforça o aspecto alegórico da lei penal a crença num Judiciário preso à lei e incapaz de inovar, principalmente no campo penal. A derrocada do Direito Penal começa com seu simbolismo. Pode parecer contraditório, mas a lei penal encontra adversários também dentre seus árduos defensores, que acreditam poder defendê-la por inteiro, sem ter de extirpar uma parte para salvar o todo. O simbolismo penal vincula-se, primitivamente, à ideia de criminalização como fator de dissipação do medo social.
[...]
O simbolismo penal acontece de maneira generalizada no sistema punitivo, desde institutos como a fiança até o momento da ressocialização do sentenciado. Fazendo uma análise do instituto em estudo à luz do princípio da proibição da proteção deficiente, cabe esclarecer que a questão da prescrição antecipada não é meramente formal, mas abrange aspectos para a real proteção dos direitos fundamentais[13].
Realmente, a solução vislumbrada pelo STF e STJ quanto à prescrição virtual não parece ser a melhor. Até a entrada em vigor da Lei Federal nº 12.234/2010, não se vislumbra razão para não aplicação do instituto, mesmo diante da ausência de norma legal expressa.
Os Princípios da Economia Processual, Proporcionalidade e, ainda, da Dignidade da Pessoa Humana implicam a ampla utilização do instituto da prescrição virtual.
Ofende aos mencionados princípios constitucionais impor ao acusado um dano marginal desnecessário quando, com segurança, sabe-se que haverá a incidência da prescrição retroativa.
Não se pode afastar a prescrição virtual com a alegação de que haveria violação aos princípios da presunção de inocência e individualização da pena. A prescrição virtual apenas beneficia o indiciado. Logo, não se vislumbra nenhuma violação ao princípio da presunção de inocência. Afinal, não se aplica sanção ou se agrava a situação do indiciado sem o devido processo legal.
Quanto à individualização da pena, a prescrição virtual trata, apenas, de um juízo hipotético, construído diante dos antecedentes e circunstâncias do fato típico praticado. Logo, por não implicar efetiva restrição da liberdade, mas somente juízo hipotético, não há qualquer vício. A jurisprudência pátria (sobretudo a cultura da pena mínima) está consolidada e permite, com segurança, uma projeção do magistrado sobre a pena concreta que seria aplicada.
É claro que, se houver dúvida, deve prevalecer o interesse da sociedade, com o afastamento da prescrição virtual. Mas, note-se que essa dúvida precisa ser objetiva e não pode ser invocada para afastar a aplicação do instituto quando é inegável a incidência da prescrição retroativa.
Todos esses argumentos fundamentam a ideia no sentido de que o foco principal para o acolhimento da prescrição virtual é, além do respeito aos princípios constitucionais acima citados, a falta de interesse de agir.
Não há necessidade e utilidade em um processo penal que, ao final, trará como resultado, somente, a morosidade da justiça e o dano marginal ao acusado.
Assim, julga-se que, para os crimes praticados até a entrada em vigor da Lei 12.234/2010, é de rigor a aplicação da prescrição virtual, sob pena de violação a diversos princípios constitucionais.
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